Empresárias contam desafios de empreender (e aprender) com a neurodivergência

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“Você precisa viver para entender”. Essa afirmação bem que poderia ter saído de um livro, retratando a coragem e a determinação necessárias para se iniciar o “próprio negócio”. Porém, ela faz parte da trajetória de Mércia Silva – mulher, empreendedora e mãe atípica. Há 11 anos, aquela foi a explicação da médica para uma mãe de segunda viagem que convivia com uma criança de 1 ano e 8 meses, que não se desenvolvia, não falava, não andava, apenas gritava e chorava dia e noite e tinha muita seletividade alimentar. “Naquele momento, eu me senti perdida, porque junto com o diagnóstico do Thiago não me foi dada nenhuma esperança”, relembra.

Assim como é visto no mundo dos negócios, o seu caminho não foi uma linha reta. Mas essa paulista radicada em Alagoas, persistiu. Foi até São Paulo, encontrou diagnóstico e tratamento mais assertivos, teve acolhimento numa especialista alagoana, conseguiu evoluir o tratamento com laudos e terapias adequadas, mas de repente, teve o tratamento do seu filho suspenso pelo plano de saúde. Foi então que acionou a justiça, pediu demissão do seu emprego numa loja de roupas e se deparou, talvez, com o pior momento deste diagnóstico, uma crise na qual Thiago prendeu a respiração e não conseguia soltar o ar.

“Quando vi meu filho sem tratamento e nessa situação, não tive mais esperança de voltar ao mercado de trabalho. Eu que sempre fui ativa, já estava distante de todo mundo e fui paralisada por esse diagnóstico. Porque essa criança precisava de mim”, confessa Mércia.

A partir de então, essa mãe atípica se jogou nesse “estranho mundo novo”. Buscou capacitações técnicas, aprofundou leituras sobre o diagnóstico, se conectou a especialistas no assunto, afinal, como ela mesma constatou, “o autismo não está só na clínica. O autismo me acompanha na igreja, no parque, no almoço, no jantar, na praia, me acompanha na vida. Então, eu quero aprender a cuidar do meu filho”.

Obstinada, Mércia buscou alternativas, mesmo sem condições financeiras, para manter as terapias de Thiago em dia. Ela negociava descontos, se oferecia para fazer faxina nas clínicas e nas casas das terapeutas, acompanhava as sessões de perto e participava de todas as palestras online sobre autismo.

Mas quem são os neurodivergentes?

É bom não perder de vista a distinção entre neurodivergência e neurodiversidade. Como bem explica Junny Freitas, coordenadora regional do Instituto Lagarta Vira Pupa em Alagoas, “neurodiversidade representa o plural de quem nós somos. Mas existe o que é esperado, típico, e o que foge do esperado no ser humano, dentro dessa diversidade. Isso é a neurodivergência, ou seja, um comportamento atípico da atividade cerebral”.

Segundo o British Medical Bulletin, entre 15% e 20% da população global é considerada neurodivergente. Os diagnósticos associados referem-se frequentemente ao Transtorno do Espectro Autista (TEA), o Transtorno por Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), a Dislexia, a Dispraxia ou Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação e os Transtornos de Processamento Sensorial. Mas a lista é muito ampla.

Neurodivergência é uma deficiência invisível e não é adquirida, é uma condição. O indivíduo nasce assim. “Pessoas com deficiência têm 60% menos chances de serem inseridas no ambiente produtivo, do ponto de vista social. Mas quando a gente olha para o recorte de pessoas neurodivergentes, é muito mais desafiador”, registra Caio Bogos, autista e fundador da aTip.

Para ele, muito se sabe, mas pouco se fala no assunto, e considera que ainda há uma série de barreiras comportamentais de acessibilidade. “Para que a gente seja de fato incluído nos ambientes, dependemos sempre da atitude do outro. O que facilita, por um lado, já que não estamos falando de mudanças estruturais com grandes investimentos. Porém, é bem mais difícil, porque dependemos da disposição de um grupo de pessoas típicas para sensibilizar e incluir essa divergência em suas rotinas”, destaca Caio Bogos.

Apesar dos desafios, o cenário vem oferecendo uma série de oportunidades. Estudos da Universidade Mackenzie mostram que os negócios que contam com a neurodiversidade têm uma performance financeira superior em 30% àquelas que não incorporam.

Talvez porque essa reação química diferente gera comportamentos favoráveis ao empreendedorismo, como o foco intenso em detalhes; o pensamento criativo e inovador, encontrando soluções originais para problemas complexos; a honestidade e a transparência; e a determinação para alcançar seus objetivos, mesmo diante de dificuldades.

A reinvenção de uma mãe atípica

“Foi depois que eu aprendi a lidar com o meu Thiago, que veio o empreendedorismo”. A loja Sonho Meu, idealizada pela Mércia Silva, surgiu em novembro de 2019, como resultado da esperança, da dor compartilhada e da empatia.

Numa primeira malinha com roupas de criança, shorts tactel, pijamas, blusas de personagens e muita determinação, Mércia carregava para as clínicas de terapia, durante as 40 horas semanais de tratamento do seu filho, mostrando a cada mãe de crianças neurodivergentes, todo o seu propósito e razão de existir com o empreendedorismo social.

“Um dia o autismo me apresentou o empreendedorismo, e hoje, eu apresento ao empreendedorismo o meu Thiago”. Atualmente, Mércia é mãe de três meninos, Lucas de 17 anos, com TDHA; Thiago de 10 anos, com autismo grau 2 e TDHA; e Miguel, de 2 anos.

Foi o diagnóstico que a fez lutar nesses cinco anos de empresa, comemorados neste mês de novembro de 2024, e foi por ele que nunca desistiu, sempre recomeçando a cada desafio. Afinal, o propósito do negócio se entrelaça à sua existência. “A gente tem que ir para as feiras e eventos com o boleto no bolso e o sorriso no rosto, porque dali a gente sempre sai com uma nova esperança”, descontrai Mércia.

Com seu instinto empreendedor, a dona da Sonho Meu teve seu primeiro contato com o Sebrae Alagoas e foi impactada pelo Efeito Furacão, um programa desenvolvido pelo Sebrae Delas, em parceria com a B.Labs, que capacita mulheres e acelera seus negócios, por meio de workshops, painéis, palestras e network.

Rede que empreende

Mércia Silva representa a história de tantas outras mães, tias, sobrinhas e mulheres que resistem e ressignificam seus desafios em oportunidades, através de uma rede de apoio e empreendedorismo. Afinal, ela faz parte do Grupo Famílias Atípicas Empreendedoras de Alagoas.

Tudo começou numa audiência pública, em 2023, em homenagem ao Maio Furta-Cor, o mês de conscientização sobre Saúde Mental Materna. A maioria das famílias que ali participavam demonstrava suas fragilidades com pessoas com deficiência e empreendiam por necessidade, especialmente nos ramos de vestuário, artesanato e alimentos. Luana Rodrigues, mãe solo de cinco filhos atípicos, idealizadora do grupo, viu nas narrativas uma oportunidade para criar esse movimento, gerando renda e facilitando a rotina com as demandas das famílias neurodivergentes.

Atualmente, são mais de 240 empreendedoras que já conquistaram visibilidade no Tribunal de Justiça de Maceió, participando da Feira Agropecuária, realizada mensalmente; no Tribunal Regional do Trabalho; e na Prefeitura de Maceió. Recentemente, também participaram como expositores do primeiro evento do Sebrae Alagoas falando sobre Neurodiversidade & Negócios, que além da feirinha com produtos voltados à causa, também trouxe palestrantes especialistas no tema.

“A maioria das vezes, as pessoas olham para a placa da deficiência com desprezo. Mas espaços assim, com o símbolo da neurodiversidade, essas oportunidades, tudo isso eleva nossa autoestima e renova nossa esperança por inclusão, porque fomos vistos e acolhidos”, registra Mércia Silva.

Sobre desafios? O mundo dos negócios está apenas engatinhando os primeiros passos para a inserção da neurodivergência. Mas é um caminho sem volta. E como destacou Junny Freitas, em sua palestra durante o evento no Sebrae Alagoas, “não, por favor, não somos todos iguais. Vamos começar a descontruir isso na nossa sociedade. Somos diferentes. E está tudo bem ser assim!”

Seja com o exemplo da Mércia, da Luana, ou dos 18 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência no Brasil, esse tema nos convida a uma profunda reflexão sobre a forma como enxergamos o talento e a capacidade humana. Afinal, ao valorizar as diferenças neurodiversas, abrimos portas para um universo de possibilidades, co-criando oportunidades antes negligenciadas. Isso é empreender com responsabilidade social, visando a um futuro mais justo, próspero e sustentável para todos.

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